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Com licença; vou passar com a minha doença rara

  • Foto do escritor: giselle chassot Lago
    giselle chassot Lago
  • 28 de fev. de 2023
  • 4 min de leitura



Muitos não sabem, outros não veem e uma porção de gente faz questão de nem tomar conhecimento. Mas o fato é que, em todo o mundo, cerca de 350 milhões de pessoas convivem com uma ou mais das 7 mil doenças raras já catalogadas. Hoje, último dia do mês de fevereiro, é a data dedicada a lembrar que essas pessoas existem.

É Dia Mundial das Doenças Raras. E, embora possa não parecer e talvez você não saiba, eu sou uma dessas pessoas. A minha patologia não tem características físicas próprias. Os sintomas não são os mesmos para todos os portadores. Ainda assim, posso assegurar que fui uma das sorteadas no mundo para conviver com uma síndrome que ataca um entre 20 a 40 mil habitantes desse nosso planetinha. Eu tenho a forma mais comum da Síndrome de Ehlers-Danlos – a do tipo hipermóvel.

Se você convive comigo, certamente já me viu com gesso, tala ou qualquer tipo de imobilizador porque alguma parte de mim saiu do lugar. Ao contrário da síndrome, que é rara, para os pacientes, articulações que saem do lugar são muito comuns. Eu não faço a menor ideia de como eu desloco joelho, tornozelo, ombro e outras coisinhas. O que eu sei é que isso complica a minha vida, assusta empregadores e dói bastante. Mas não me impede de produzir.

Existe todo um espectro associado à SED. Quando você descobre o diagnóstico, é como se passasse por um portal. Tudo começa a fazer sentido: o eterno cansaço, a louça quebrada porque não para nas suas mãos, as pernas que adquirem vida própria se a gente fica muito tempo de pé, a sensação de desmaio, a taquicardia, a falta de ar, o medo de cair, os tremores. Não é coisa da cabeça da gente nem invenção de preguiçosos.

Sabe qual foi das maiores torturas da minha vida? Trabalhar num lugar com escada em caracol. Além do pavor que a escada provoca em qualquer sediano, o caracol me deixava tão tonta que eu nem sabia onde estava quando chegava no topo. A isso se chama disautonomia. Ela também é a culpada pelos muito constrangedores suores que fazem meu rosto e meu cabelo pingarem com frequência.

A SED não é boa companhia. Como é invisível, muitos não acreditam na dor do paciente – aí incluídos médicos. Muitos só olham para o que está lesionado. Eu já fui parar no hospital com um joelho, um tornozelo e um ombro deslocados. Tudo ao mesmo tempo. Por causa de um tombo. Ainda assim, o profissional que me atendeu sequer aventou a possibilidade de que tivesse algo errado naquilo tudo.

Já caí de cara no tapete verde da Câmara dos Deputados, na escada que leva ao estacionamento, em inúmeros meios-fios. Já tive que me render ao fato de que não consigo acompanhar caminhadas, manifestações e protestos ou carnavais. Abandonei os saltos elegantes em prol dos tênis e sapatilhas e preciso me sentar com frequência. Mas trabalhar com tala e gesso não tem qualquer problema pra mim.

A SED não roubou minha vocação e nunca me fez menos profissional que qualquer pessoa. Amo ser jornalista e faço isso há mais de 30 anos. Eu só fui diagnosticada há dois, mas tenho SED desde sempre.

Não é fácil ter uma doença rara. O tratamento é complicado, a medicação é caríssima e o custo emocional para quem vive com um paciente é alto. A demora para encontrar o caminho correto e a equipe que compreenda o que são aqueles sintomas potencializa os problemas. Quanto mais tempo tratando uma coisa como se fosse outra, pior a vida do portador.

Eu não tenho acesso a qualquer “benefício” que a doença poderia me trazer: nada de vaga especial no estacionamento, prioridade em filas, vagas garantidas em concursos. As pessoas só acreditam no que elas veem. E ninguém vê a Síndrome de Ehlers-Danlos. A não ser que eu desmaie no meio da rua (o que nunca aconteceu), não há o que ver. A dor é invisível.

Quando a gente fala que não consegue andar “aquilo tudo” e o aquilo tudo não passa de uma quadra, as pessoas acham que têm o direito de te forçar. Elas não veem o quanto dói, como cansa ou o quão fácil é perder o fôlego e o equilíbrio.

E , às vezes, parece que todo mundo tem uma “explicação” simplista e de fácil solução. Não, senhores: não é uma coisa que eu invento, não é porque eu não comi, não é porque meus óculos estão fracos, não é porque eu não faço exercícios, nem porque eu quero uma folga do trabalho, muito menos por falta de fé. E eu não quero e nem sou obrigada a explicar minha condição de saúde para todo mundo que eu encontro na rua e, principalmente, nas filas. Se eu falar, alguém vai acreditar de verdade? Ou vão seguir olhando com cara de espanto, balançar a cabeça e dizer que nunca ouviram falar da doença que eu tenho?

Hoje, dia mundial das doenças raras, o presente que eu e os outros raros queremos é respeito. Acessibilidade. Tratamento. Visibilidade. E, se for possível e não custar muito, um pouquinho de solidariedade. Esqueçam os julgamentos. Ninguém tem uma doença rara por escolha. Ninguém escolhe sentir dor. E, sério, não fazemos os sintomas surgirem para chamar a atenção. Se fôssemos capazes de “produzir” sintomas, também seríamos capazes de extingui-los.

No caso da SED, a dor pode até ser invisível. Mas o paciente, não. Hoje é um dia para lembrar que estamos vivos e vai ter paciente raro nas ruas, nas filas, dirigindo seus carros, procurando trabalho, produzindo, pagando impostos . Temos direitos, talentos, vontades e desejos. Como qualquer um. Queremos políticas de saúde que não nos excluam; queremos um mercado de trabalho que não nos veja como problema. Queremos respeito.

 
 
 

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